Casa de Afonso Pena?
Não é preciso passar muito tempo pelos corredores ou pelas salas de aula da Faculdade de Direito da UFMG para ouvir o nome de Afonso Pena. Isso, seja por um dos apelidos que a Faculdade recebe – “Casa de Afonso Pena”, ou ainda, “Vetusta Casa de Afonso Pena” -, seja pelo nome que tem o Memorial da Faculdade, sediado nas dependências da biblioteca. Esse apelido da Faculdade se assemelha aos de outras faculdades; apenas a título de exemplo, é possível citar a “Teixeirinha” de Niterói – em referência a Teixeira de Freitas – e a “Casa de Tobias”, como é chamada a Faculdade de Direito do Recife devido a Tobias Barreto.
Surge, inevitavelmente, a pergunta: quem foi o tão lembrado Afonso Pena?
Afonso Augusto Moreira Pena nasceu no atual município de Santa Bárbara (MG), em 30 de novembro de 1847. Cursou Direito em São Paulo entre os anos de 1866 e 1870. Desde essa época, comprometeu-se com a causa abolicionista, não sendo dono de escravos e advogando em prol da defesa dos escravizados em Barbacena. Como Afonso Pena defendia a abolição da escravatura? Para ele, a libertação imediata dos escravizados resultaria em danos econômicos avassaladores aos proprietários e, por isso, defendia indenizar os donos de escravos e adotar a mão-de-obra imigrante, sobretudo europeia, como alternativa.
Em 1874, o santabarbarense filiou-se ao Partido Liberal. Foi deputado provincial de Minas Gerais entre 1874 e 1878 e deputado geral de 1878 a 1884 e de 1886 a 1889. Entre 1882 e 1885, foi ministro da Guerra, da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, e do Interior e Justiça. Como governador de Minas Gerais (1892-1894), foi figura importante na construção da nova capital, Belo Horizonte. Participou da fundação da Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais, atual Faculdade de Direito da UFMG. Foi vice-presidente da República de 1902 a 1906 e presidente de 1906 a 1909, quando morreu no dia 14 de junho, acometido por uma pneumonia.
A primeira notícia que se tem do uso da expressão “Casa de Afonso Pena” na Revista da Faculdade de Direito da UFMG é de 1958. Na notícia, afirma-se a obsolescência do antigo casarão que abrigava a Faculdade, datado de 1900, o que justificava a transferência para o futuro “Edifício Professor Vilas Boas”, o que aconteceria ainda em 1958, juntamente com a demolição do casarão. O Edifício Professor Vilas Boas é referido no texto como “Casa de Afonso Pena, de linhas modernas e práticas”, necessário à época para “suprir o problema das eternas seis salas de aulas e das dependências desambiciosas e simples” da instalação anterior.
Entre 1959 e 1961, para se referir à construção e transferência da Faculdade de Direito para o Edifício Professor Vilas Boas, também chegou a ser utilizada a expressão que até hoje apelida a Faculdade. Nos anos subsequentes, tornou-se corrente o uso do nome “Casa de Afonso Pena” em notícias, textos jurídicos para a Revista e em memórias sobre antigos professores.
Uma emblemática passagem data de 1975. Emblemática, pois nela se encontra o primeiro uso, ao menos na revista da Faculdade, do termo “Velha Casa de Afonso Pena”. Esse uso sugere uma possível relação entre dito termo e o nome “Vetusta”, também usado até os dias atuais. Essa passagem refere-se ao professor Wilson Melo da Silva como “grande mestre da Velha Casa de Afonso Pena”. Na mesma edição, no discurso de paraninfo, Pedro Aleixo se refere à Faculdade como “velha casa da praça Afonso Arinos”. A praça que hospedava o velho casarão se chamava originalmente Praça da República, com todo o simbolismo de uma avenida em aclive que desembocava na Praça da Liberdade. Em 1917, o nome da praça foi modificado para Afonso Arinos, em homenagem a um dos fundadores da Faculdade.
O uso da expressão conhecida entre discentes e docentes da Faculdade, “Vetusta Casa de Afonso Pena”, ou ainda, “Vetusta”, para se referir à Faculdade, provavelmente data de algum período posterior à construção do edifício Vilas Boas. Na edição da revista da Faculdade de 1974 encontramos um dos primeiros indícios de uso da expressão “vetusta Casa de Afonso Pena” quando o professor Oswaldo Pataro rememorou o velho colega Valle Ferreira: “despertou-me particularmente a atenção, dentre os mestres da vetusta ‘Casa de Affonso Penna’, uma figura de olhar manso, de voz pausada, andar tímido, sorriso entre bondoso e irônico”.
O fato de o prédio e depois a Faculdade ter se colocado sob os auspícios do nome de uma figura masculina – como algumas outras faculdades de Direito brasileiras – é sintomático. Uma Faculdade de Direito, em especial até a década de 1920, era vista como um local tipicamente masculino: a primeira aluna a ingressar na Faculdade de Direito da UFMG, Maria de Lourdes Prata, o fez apenas em 1923, tendo se graduado em 1927 – sendo que o curso de Direito da UFMG data de 1892. Não muito tempo antes, em 1898, Myrthes Gomes de Campos concluiu o curso de Direito e, em 1906, foi a primeira mulher a integrar o Instituto dos Advogados do Brasil, antecessor da Ordem dos Advogados do Brasil, que foi criada em 1930. Antes de Myrthes de Campos, nenhuma mulher tinha solicitado autorização para exercer a advocacia no Brasil. Os órgãos competentes protelaram a decisão e colocaram inúmeros empecilhos na tramitação do registro do diploma na Secretaria da Corte de Apelação do Distrito Federal. O próprio presidente da Corte desconfiava da capacidade das mulheres para exercer a carreira jurídica. Um censo do Conselho Nacional de Justiça mostra que a presença feminina na magistratura brasileira era imperceptível antes da década de 1950 e cresceu lentamente desde então, sempre em números absolutos inferiores à presença masculina e mais devagar do que o crescimento desta. Portanto, é esperado que, no período analisado, as figuras em uma faculdade de Direito sejam predominantemente masculinas.
Enquanto órgão dedicado à história do ensino jurídico (e seus arredores), o nosso Memorial precisa saber historicizar inclusive a si mesmo, desde o próprio nome.
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